quarta-feira, 2 de abril de 2014

o engano da digimortalidade

Diz-se que vivemos tempos apressados, numa espiral imensa que nos desliga uns dos outros. Os nossos círculos de amigos e familiares reduzem-se, as relações humanas escasseiam. E, num movimento inverso a essa espiral, as relações que sobrevivem adensam-se, tornando-nos dependentes, frágeis. Agarramo-nos ao que nos resta de humano. 

Lugar comum: nunca estivemos tão sozinhos, mas nunca estamos sozinhos. O smartphone e o computador são janelas abertas sobre o mundo (outro lugar comum), que nos trazem a companhia virtual de amigos, conhecidos e followers. O silêncio desconfortável da espera pelo comboio pode ser anulado com um "swipe to unlock". A manhã desocupada no escritório, preenchida por likes e shares.

Não estamos sozinhos e apreciamos o conforto limpo da tecnologia. O que se perde em subtexto ganha-se na sensação de pertença e no preenchimento do Eu, na expressão da nossa individualidade. Isto gosto, isto não gosto, isto gosto tanto que tenho de partilhar.  Isto sou Eu, existo em exibição ao mundo, em direto. Não vou publicar isto agora, que as pessoas estão a jantar. O meu público é meu amigo. E os meus amigos tornaram-se o meu público.

Porque encontramos tanto conforto na tecnologia? Ela, em si, não é nada. É apenas tanto quanto os conteúdos que lá veiculamos. E ao não ser nada, é tudo. Não desilude, é sempre nova, funcional, imediata, transparente, etérea. Os nossos corpos envelhecem e morrem, mas o iPhone há de ter uma nova versão, qual elixir da juventude que nos renova o espírito. E enquanto acompanharmos a evolução, adiamos a morte. Somos digimortais. Atingimos a glória, fazemos História, estamos impressos para sempre na rede e em rede. É tão fácil. Não temos de ser no mundo, basta-nos parecer, no virtual. 

Petições, partilhas, assinaturas. Fazemos tão pouco que nos preenche tanto. Sou comentador, crítico de cinema, ativista. Na sanita, no sofá, ou no assento do autocarro. É fácil sentirmo-nos especiais, reivindicativos, revolucionários. 

A revolução digital trouxe-nos coisas boas, este texto não pretende ser uma crítica ou um olhar nostálgico sobre o "antigamente". Mas a verdade é que a tecnologia não nos preenche, pois só pode ser aquilo que nela imprimimos. Como tal, é apenas uma distração, da Vida e do que realmente importa. Um paliativo numa sociedade que, ao ligar-se à rede, desligou-se da realidade.