sábado, 23 de julho de 2011

girl with a dark bullet

I

A menina gostava de apanhar pedrinhas na areia da praia. Gostava especialmente da sua forma oval, polida pelo tempo, a brilhar ao sol, e pensava muito no caminho que cada pedrinha tinha levado até chegar ali, à sua mão pequena naquela praia.

E pensava em todas as histórias que a pedra, se não fosse pedra, teria testemunhado. E em tudo o que podia ter aprendido com elas, se não fosse pedra.

Numa manhã luminosa em que fazia o caminho até à Barrinha, picou o pé numa bem bicuda, que sobressaía entre a areia fresca. Pegou-lhe, lavou-a na água salgada e observou-a à luz. Era uma pedra grande, completamente negra e muito brilhante do mar, diferente de todas as outras que tinha visto até então. Mas não estava arredondada - parecia uma grande bala negra, com arestas cortantes. Quase parecia ter caído do céu naquele preciso lugar momentos antes, como um  míssil, em vez de ter rebolado debaixo dos oceanos durante anos e anos.

Na verdade, tinha rebolado ao sabor das ondas durante anos e anos, mas não tinha suavizado as arestas. A menina não sabia disso... e levou-a para casa.

No dia seguinte, a menina resolveu transformar a pedra numa peça de xadrez, como tinha visto num filme. Contou aos pais, que lhe deram um pequeno martelo para esculpir, e começou o seu trabalho. De vez em quando ia à praia procurar outras pedras que fossem mais fáceis de manejar, pois esta grande bala era um mono compacto, muito pesado para as suas pequenas mãos. Mas não encontrou nenhuma pedra igualmente brilhante, embora outras parecessem claramente mais fáceis de esculpir.

Sempre que parecia que a pedra estava a ganhar forma, uma pancada em falso criava novas arestas cortantes. A menina deixou de ir à água porque os pequenos cortes que tinha lhe faziam arder as mãos. Leu livros e comprou novas ferramentas, mas nada parecia resultar. A grande bala negra continuou um trambolho, muito longe da peça de xadrez que ela idealizava a king with no crown, king with no crown. Mas continuava bonita e brilhante, lá isso continuava. E a menina passava horas a apreciar as suas arestas à luz do sol e da lua.

Uma noite a seguir ao jantar, zangada, pegou na pedra e foi até à praia. Lançou-a ao mar, desistiu da ideia do xadrez, e voltou para casa, tudo sem os pais darem por nada.

II

Foi dormir, mas teve sonhos estranhos e confusos, que a fizeram acordar com o coração pequenino. E de manhã, mal olhou para a mesa-de-cabeceira, assustou-se: a pedra estava lá pousada. Estava diferente, parecia ainda mais bonita e também mais leve... resolveu recomeçar o seu trabalho.

O resto do verão foi passado a trabalhar na pedra, sempre com dificuldades. A menina esculpia e evitava pensar naquela manhã e no susto que apanhara. Mas o tempo foi passando, ela foi perdendo o bronze do sol e o seu cabelo loiro escureceu - os pais começavam a ficar preocupados. Tentaram fazê-la ver que aquilo não ia a lado nenhum.

E de facto, a menina acabou por perder algum do fascínio pela pedra, que se mantinha torta e desinteressante. Deixou-a em casa um dia e resolveu ir brincar para a praia. Durante uns dias não se lembrou dela: recuperou alguma da sua cor e alegria, passeou muito junto à água e colecionou conchas.

III

Faltava um mês para o fim das férias de verão quando a menina acordou a meio da noite alagada em suor. Tinha sonhado com homens maus que lhe cravavam a bala negra no coração, num ritual junto a uma grande cascata. Saiu da cama devagar e pôs-se de joelhos, a cabeça a tocar no tapete rugoso. Olhou para debaixo da cama - tinha-se esquecido, mas a pedra estava lá. Esticou o braço pequeno e recuperou-a, ficando a olhar para ela muito tempo, até se voltar a deitar e pousá-la na almofada.

Durante esse último mês das férias de verão, o seu trabalho na pedra deu frutos. A grande bala já se assemelhava a um Rei, embora continuasse com problemas na cabeça e a coroa ainda fosse indecifrável. Os pais ajudaram-na a esculpir a base, mas passado algum tempo perceberam que seria impossível fazer da pedra um Rei digno de um tabuleiro de xadrez. 

Tentaram mostrar à menina que havia outras coisas com que se entreter - livros, filmes, e até outras pedras para colecionar. Mas nada demovia a menina de 7 anos daquilo que parecia ter-se tornado a sua missão de vida. 

E, finalmente, depois de mais um dia de martelinho em punho, a menina achou que tinha atingido o seu objetivo: a grande bala negra tinha-se tornado um Rei. Claro que não era um Rei, Rei - a menina achou que seria arriscado investir muito na zona da coroa, pois podia arrancar-lhe a cabeça com o martelo - mas assemelhava-se a isso. A sua coroa fazia lembrar a cabeça dos Bispos nos tabuleiros de xadrez, com um grande espigão a apontar para o céu. Mas não fazia mal - era o seu Rei.

Feliz com a sua obra, mostrou-a às amigas e aos pais, que olharam de nariz torcido para o grande espigão-cabeça. As amigas riram-se dela e os pais preocuparam-se com ela. «Não andes a correr com isso na mão», avisaram. Mas a menina não ligou. E andava de bicicleta com o Rei posto no cestinho cor-de-rosa, ou passeava junto à água com ele na mão - gostava de o molhar e admirar o seu brilho ao sol.

No dia 29 de Setembro, na véspera do regresso a Lisboa, a menina de 7 anos saiu de casa entusiasmada e cruzou o pequeno pátio que a separava da areia da praia, com o Rei negro na mão. Procurou as amigas no areal, mas elas não estavam lá, pelo que voltou para trás e resolveu atravessar a estrada para as procurar na Ria, no lado oposto da ilha.

De costas para o mar, atravessou a estrada a correr - no preciso momento em que um jipe avançava destemido por entre os inúmeros carros estacionados em segunda fila naquela rua «Um dia que queira aqui chegar uma ambulância ou os bombeiros, não sei como vai ser!», tinha ouvido a avó dizer.

A menina abriu os olhos depois de um reboliço de cabelos e asfalto. Tinha dificuldade em respirar, sentia um nó apertado na garganta. Sentiu o seu corpo a ser virado de barriga para cima e viu uma senhora muito loira,  grávida, com a pele tostada pelo sol, a fitá-la com olhos azuis, estarrecidos e culpados.

Entre os gritos da população e a visão a fugir-lhe, distinguiu a figura do pai, barbudo e moreno, ajoelhado junto a ela. Tira-lhe isso da garganta! Chamem a ambulância! Arranjem um pano para estancar isto! Ele agarrou-lhe na nuca e ela sentiu uma grande pressão no pescoço, como se o nó que lhe entalava a garganta estivesse a ser desfeito lá dentro. Uma grande dor e um grande alívio, acompanhado por um banho morno que lhe inundou o pescoço, os ombros, o peito. 

Olhou para o que lhe tinha sido arrancado da garganta. Era a grande bala negra. Tinha retomado a sua forma de sempre se é que algum dia tinha mudado - já não era o Rei que ela pensava ter construído. Mantinha a forma do dia em que a tinha encontrado, o seu aspecto de míssil, as suas arestas cortantes. O seu brilho permanecia o mesmo, um brilho que a cegava debaixo do sol do meio-dia. 

A menina deixou-se maravilhar pelos reflexos de mil cores que a pedra criava na sua superfície lisa. Deixou de ouvir os gritos e não chegou a ouvir a ambulância a apitar entre os carros, lá longe. 

Porque, entretanto, fechou os olhos.

9 comentários:

Primo disse...

clap,clap,clap!!muito bom!!

meeg-el disse...

Muito bom, mesmo! :) Gostei muito. :)
Parabéns pelo talento!

chinfrim disse...

Obrigada, familiares :) e amigos *

jp disse...

"A menina gostava de apanhar pedrinhas na areia da praia. Gostava especialmente da sua forma oval, polida pelo tempo, a brilhar ao sol, e ..." Muito bom. Moral da história : as meninas devem deixar no fundo do mar todas as pedras que não prestem para nada. As outras , não.

Anónimo disse...

Muito bom e revelador.De acordo com JP,não podia estar mais.
No outro dia conheci um patrício que tinha um desporto invulgar,tinha pena de si.Praticava diáriamente com afinco.Dava voltas e reviravoltas ao passado,culpava-se,reculpava-se,analisava,e no final,sem ter chegado a parte nenhuma,e por isso mesmo,tinha pena de si.Um absurdo,pensei!Em novo encontro confessou-me que tinha agora outro desporto,fartara-se do anterior.Tinha descoberto que o que era bom era ter pena dos outros,passara a exercitar a preocupação com um universo mais vasto,saía agora do mudo do Eu e passeava pelo mundo do NÓS.Sentia-se e muito mais em forma!

DESPORTIVO

Anónimo disse...

Se a pedra andou anos e anos ao sabor do oceano sem nunca ter sido polida, demonstra que mesmo com o poder imenso do mar, foi este que se moldou à pedra e nao o contrário, aqui está retratada a sua verdadeira importância na história (penso eu).
A menina na sua inocência prematura, acreditou que uma simples pedra nao teria valor, então tentou transforma-la em algo que ela achava "belo", nesta tentativa foi destruindo a
pedra aos poucos e poucos, já frustrada, por não conseguir o que queria mandou a pedra fora, mas esta teimosa, voltara, porque queria convencer a menina que era bonita exactamente como ela a apanhou. Nao convencida e levando a sua avante, na obssessão de transformar a pedra a todo o custo, entrou num mundo em que a realidade e o sonho se tornam quase indistinguíveis, onde a menina só pensava em ter um rei perfeito para o seu tabuleiro, nunca mais se lembrando do 1º dia que viu a pedra, e que a distinguiu por ser diferente de todas as outras que já tinha visto até entao, e que era isso que a fazia especial. Durante
dias e noites tentou esculpir a pedra, até que por fim quando atingiu o seu objectivo foi
mostrar a todos que ja tinha o seu rei para o seu tabuleiro.
No fundo a pedra permaneceu sempre igual, e percebeu que a menina nunca a iria ver como uma
simples pedra mas sim, ia sempre sonhar que ela seria um rei, ao entender isto, a pedra so queria voltar ao seu mar, ao seu mundo, onde era verdadeiramente poderosa e bonita, e talvez para um dia ser encontrada por alguem que a quisesse como ela é e não, no que ela poderia ser (O final trágico a meu entender simboliza a libertaçao da pedra visto que a menina nao largaria o "falso rei").
A moral da história acho que passa um pouco pelo facto das pessoas não conseguirem dar o devido valor ao que lhes é atribuido na vida e tentarem sempre transformar tudo o que lhes é "dado" para tentarem ser felizes, não percebendo muitas vezes que a felicidade é simples e muitas vezes está numa mera pedra, e que o importante, não é o valor que os outros dão ás coisas, mas sim o valor que as coisas têm para nós, e o que elas nos fazem sentir, isso sim é o mais importante, no fim é isso que conta.
Se queremos um "rei" ao nosso gosto há "material" muito mais fácil de moldar que uma pedra,
esta é apenas a minha humilde opinião. Parabéns pela escrita.

chinfrim disse...

Obrigado pela tua anónima interpretação e opinião. Uma pedra com arestas que nos rasgam as mãos e impossível de esculpir deve ser largada de novo no mar. Pode ser que alguém com mãos menos frágeis lhe pegue. A pedra tem o direito de ser pedra, assim como a menina tem o direito a mergulhar no mar sem que lhe ardam as mãos. Outras pedras e outras meninas virão.

Anónimo disse...

Pois,sem dúvida,no relativismo de tudo e de nada,somos de um lado e do outro,somos nós, e os outros que se lixem.O direito de sermos ABSOLUTAMENTE nós,sem concessões,pára no exercício do outro,ou então vamos para anacoreta ou eremita.Nesta história,de meninos e pedras,talvez se encerrem algumas das grandes verdades da existência.Uma delas ,é sem dúvida,a de que sendo gregários,existimos enquanto tal na interacção com o outro,nunca na afirmação superlativa do nós.Outra ,mais directa ,é a de que há gajos e gajas que são uns egoístas do caraças,sobrevivendo chupando as energias dos outros...como os vampiros.

Interactivo

chinfrim disse...

"existimos enquanto tal na interacção com o outro,nunca na afirmação superlativa do nós" Gostei, Interactivo! Obrigada :)