terça-feira, 20 de julho de 2010

a visita

O dragão negro cruzou os céus da noite e rugiu. E foi então que a Terra começou a revolver-se.

As águas levantaram-se, as nuvens rodopiaram sobre si mesmas, a terra e as areias tremeram, as árvores esticaram subitamente os seus ramos aos céus e tornaram-se frondosas.

Um monte no Alto Alentejo, não longe da fronteira espanhola, explodiu numa chuva incandescente e cuspiu dois dragões enormes. Um tinha as escamas douradas e quando voava sob a lua, em quarto-crescente, os seus raios frios davam-lhe o aspecto de uma máquina enferrujada. Mas movia-se com a leveza de uma borboleta. O outro era vermelho rubi, de olhos amarelos, e sob a luz lunar assemelhava-se a um manto de sangue, aterrorizando aqueles que tiveram a sorte de o ver passar.

A Norte, de entre as pedras altas cobertas de musgo e as árvores de raízes profundas, ouviu-se um ruído surdo, que vinha dos confins da Terra. O solo abriu-se e engoliu dezenas de árvores, numa cratera que iria ali ficar marcada para sempre. E das trevas nasceram dois dragões. Um era castanho, as suas escamas aveludadas e escuras como cabedal. O outro era verde e tinha estado milénios camuflado entre o musgo e as folhas. Agora voavam os dois, lado a lado. Rumavam a Sul, de onde ouviram o chamamento.

A lua olhava e ouvia.

As minas abandonadas a Este tremeram e desabaram. E quando a poeira assentou, voltaram a tremer, de mansinho, até se abrirem em grandes focos de luz, de onde saíram dois dragões. Um era prateado, de escamas rijas e língua sibilante, os seus olhos eram como espelhos. O outro era invisível: as suas asas roçavam os ramos das árvores, o seu olhar pousava sobre os coelhos da floresta e eles, mesmo sem o ver, corriam para as suas tocas, em fuga daquela baforada quente. Os dragões voaram lado a lado, mas quem os olhasse via apenas um, como uma bala brilhante sob a lua.

Os oceanos revoltaram-se em sete mil ondas e à sétima onda abriu-se um abismo que sufocou sete mil peixes. E dali saíram outros dois dragões. Um era verde-mar, o outro azul-marinho, ambos cobertos de corais, conchas e crustáceos. Romperam os céus lado a lado, como duas sereias voadoras, com os seus dentes aguçados e caudas compridas a escorrer água.

O dragão negro rugia e eles ouviam-no.

A baixa lisboeta estava deserta, como em qualquer madrugada de segunda-feira, quando as pedras da calçada começaram a agitar-se. Uma a uma saíram das suas covas e deram lugar a um grande ovo branco, que brotou mesmo em frente ao arco da Rua Augusta. O ovo assim ficou, quieto, à espera. Até que todos os dragões se reuniram à sua volta.

Formado um círculo de dragões, o dragão negro voltou a rugir e rachou o ovo. Foi então que nasceu o décimo dragão, enorme, totalmente branco, as escamas reluzentes e húmidas, com a sua bocarra e narinas fumegantes. O dragão branco tinha asas de cisne, cheias de penas que ele espreguiçou vaidosamente ao sair da casca. Voou uns metros acima do chão e deu um grito agudo, ao qual se juntaram as vozes trovejantes dos outros nove dragões.

Todos abriram então as suas asas e foram ganhando altitude sobre as ruas de Lisboa. O dragão negro com as suas asas de morcego e o dragão branco com as suas asas de cisne cortavam a noite e abriam caminho, avançando lentos, pesados, mas no ar, sobre as luzes da Avenida da Liberdade.

Os dez subiram em direcção ao Saldanha e aí foram encontrar sítios onde pousar. Assentaram as suas pesadas patas sobre árvores e telhados, derrubando ramos e espatifando parapeitos. Depois de pousados, fixaram os olhos amarelos, vermelhos, brancos, espelhados, nos vidros do edifício... e esperaram.

A cidade amanheceu calma, como se de um final de tarde solarengo se tratasse. As pessoas caminhavam fascinadas por entre edifícios e ruas cobertas de pó de dragão: dourados, prateados, vermelhos, azuis-marinhos, brancos, verdes, numa mistura reluzente de cores que lhes fazia lembrar contos de fadas. Os dragões continuavam pousados mas ninguém parecia dar por eles.

Foi então que abriram as janelas da enfermaria. E todos os dez pares de olhos se voltaram para lá. Uma figura surgiu à janela e lentamente afastou as cortinas, curiosa. Viu os dragões. Olhou-os nos olhos, um a um. Apreciou as suas belas escamas, as suas asas recolhidas que brilhavam ao sol, os seus focinhos ameaçadores que fumegavam levemente. O dragão negro de chifres pontiagudos bufou e encolheu-se logo, para não a assustar.

Mas ela não tinha medo, porque sabia que eles eram velhos amigos e estavam ali de propósito para vê-la. Para garantir que tudo ia correr bem.

Sentiu-se segura e sorriu.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

amélie


(photo by me)


Hoje ouvi esta música, lembrei-me de tempos passados e tive muitas saudades de Paris. Quem dera a mim um fabuleux destin.

terça-feira, 6 de julho de 2010

ocultar é viver?

Old pic by me.




Este post contém spoilers sobre O Sexo e a Cidade 2.






A propósito do fatídico encontro entre a Carrie e o Aidan, a propósito de todas as histórias que se ouvem e em alguns casos se vivem e ainda a propósito de alguns arrufos recentes, importa colocar a seguinte questão:

Numa relação saudável, que quantidade de informação (se é que alguma) deve ser ocultada da nossa cara-metade?

A Carrie optou pela honestidade, contra os conselhos das amigas e de forma um bocadinho impulsiva. O que ganhou com isso? Um anel caríssimo quando chegou a casa.

Na vida real isto não acontece. Depois de uma traição, é maior a probabilidade de se levar uma lambada do que a de receber um anel... Mas também é maior a probabilidade de se ocultar a traição, do que a de a revelar imediatamente, ou não?

Mas mais do que falar de traições um dia talvez escreva sobre elas, o que me intriga mesmo são aquelas pequenas coisas que se ocultam no dia-a-dia. Um jantar com uma velha amiga, um almoço com um colega, um copo com outro/a. Eventos inofensivos, mas que, quando revelados, podem criar problemas na relação.

Nessas alturas, o que fazer? Será mais aconselhável falar abertamente sobre tudo o que fazemos, mesmo que isso possa gerar injustificados ataques de ciúmes? Ou antes ir ocultando este e aquele acontecimento que, por nos parecer insignificante, acreditamos ser melhor que nunca veja a luz do dia?