Hoje de manhã aconteceu-me algo engraçado. Percorri o habitual caminho a pé até à estação de caminhos de ferro e perdi o comboio (algo também habitual). Sentei-me à espera do seguinte... ligeiramente preocupada com o facto de ir chegar atrasada a um compromisso de trabalho. Esperei uns 15 minutos e ele lá apareceu... mas no instante em que começámos a avançar, lembrei-me de que era dia 1 de Outubro e me tinha esquecido de comprar o passe! "Saio na estação seguinte e compro bilhete?" Não, assim tinha de esperar pelo próximo comboio e ia chegar ainda mais atrasada. Optei por arriscar uma possível confrontação com o pica.
Recostei-me no assento e tentei parecer descontraída, enquanto preparava os meus dotes teatrais para o caso de ele aparecer. As estações foram passando... e nada. Mas quando nos aproximávamos da que antecedia aquela em que eu ia sair, lá veio o revisor. Na pior das hipóteses apanhava uma multa, se tivesse sorte ele mandava-me sair na estação seguinte e ir comprar bilhete (que era aquela onde eu queria sair, logo, nem era mau de todo).
Quem não anda de comboio talvez não saiba, mas os revisores de agora usam uma máquina que faz lembrar um multibanco portátil, onde enfiam o cartão Lisboa Viva para verificar a validade do chip. Ele aproximou-se, verificou o passe o senhor que ia ao meu lado e depois estendeu a mão para pegar no meu. Achei melhor dá-lo, porque assim ele sempre via que eu comprava passe todos os meses e não estava a tentar fazer uma viagem pontual à pala. O pica pegou no cartão, inseriu-o na maquineta, fez uma pausa... e devolveu-mo, continuando o seu caminho pela carruagem.
Estranhei. Mas percebi logo. As novas máquinas de reconhecimento de passes não funcionam metade das vezes. O revisor pegou no meu passe e virou-o ao contrário - vinheta para baixo, chip para cima - de forma a fazê-lo passar na máquina, ou seja, nem olhou bem para ele. A máquina não reconheceu o chip, o pica achou habitual, e toca a seguir caminho. Salva pelas novas tecnologias.
Transístores do demo
Depois de sair do comboio esperava-me um longo caminho a pé, pelo que fui a pensar no que tinha acabado de acontecer. As máquinas foram inventadas como ferramentas para facilitar a vida ao Homem, para o ajudar a desempenhar certas tarefas e para o substituir totalmente noutras. O Homem não aguenta horas a fio sem parar de trabalhar, sob temperaturas extremas. A máquina aguenta. O Homem precisa de um intervalo para comer, outro para fumar um cigarro, outro para ir à casa de banho. A máquina não. A máquina não se distrai, não perde o ritmo e raramente se queixa. É natural que seja usada cada vez com maior frequência e num número cada vez mais diverso de actividades.
Mas será natural que se substitua à nossa sensibilidade, espírito de iniciativa e capacidade de discernimento? Ao próprio instinto? Hoje em dia ninguém duvida dos resultados que uma máquina de calcular apresenta. Chegamos a um ponto em que a convivência com a máquina é tão pacífica que todos os seus comportamentos são aceites como normais: tanto os certos como os errados. Tanto quando elas funcionam, como quando falham, confiamos nelas, achamo-las normais, integramos o seu comportamento na nossa rotina e seguimos imediatamente com a nossa vida sem pensar sequer duas vezes. Ou seja, é tão natural acreditar em '8741651 x 5861468 = 51238907603669', como que 'o passe desta senhora é válido, a máquina é que se está a passar'. E no entanto, ambas as afirmações são falsas.
Será esta convivência pacífica, simultaneamente perigosa? Estaremos nós a dar os primeiros passos no sentido do domínio total da máquina? Quanto tempo faltará para que elas tenham vontade própria? Uma vontade poderosa, totalmente racional, desprovida de qualquer consciência ética, desprovida de amor, virada somente para a eficiência absoluta.
Certamente que não fui a primeira a questionar-me sobre isto... filmes como o Exterminador Implacável ou Resident Evil (para mencionar apenas exemplos recentes) abordam a temática das máquinas autónomas. Mas é engraçado que um simples erro do pica, por ter confiado na sua maquineta, tenha trazido à baila esta questão.
Por via das dúvidas, eu desligo o PC antes de ir dormir. Nunca se sabe o que ele poderá ficar a fazer nas minhas costas :)
Recostei-me no assento e tentei parecer descontraída, enquanto preparava os meus dotes teatrais para o caso de ele aparecer. As estações foram passando... e nada. Mas quando nos aproximávamos da que antecedia aquela em que eu ia sair, lá veio o revisor. Na pior das hipóteses apanhava uma multa, se tivesse sorte ele mandava-me sair na estação seguinte e ir comprar bilhete (que era aquela onde eu queria sair, logo, nem era mau de todo).
Quem não anda de comboio talvez não saiba, mas os revisores de agora usam uma máquina que faz lembrar um multibanco portátil, onde enfiam o cartão Lisboa Viva para verificar a validade do chip. Ele aproximou-se, verificou o passe o senhor que ia ao meu lado e depois estendeu a mão para pegar no meu. Achei melhor dá-lo, porque assim ele sempre via que eu comprava passe todos os meses e não estava a tentar fazer uma viagem pontual à pala. O pica pegou no cartão, inseriu-o na maquineta, fez uma pausa... e devolveu-mo, continuando o seu caminho pela carruagem.
Estranhei. Mas percebi logo. As novas máquinas de reconhecimento de passes não funcionam metade das vezes. O revisor pegou no meu passe e virou-o ao contrário - vinheta para baixo, chip para cima - de forma a fazê-lo passar na máquina, ou seja, nem olhou bem para ele. A máquina não reconheceu o chip, o pica achou habitual, e toca a seguir caminho. Salva pelas novas tecnologias.
Transístores do demo
Depois de sair do comboio esperava-me um longo caminho a pé, pelo que fui a pensar no que tinha acabado de acontecer. As máquinas foram inventadas como ferramentas para facilitar a vida ao Homem, para o ajudar a desempenhar certas tarefas e para o substituir totalmente noutras. O Homem não aguenta horas a fio sem parar de trabalhar, sob temperaturas extremas. A máquina aguenta. O Homem precisa de um intervalo para comer, outro para fumar um cigarro, outro para ir à casa de banho. A máquina não. A máquina não se distrai, não perde o ritmo e raramente se queixa. É natural que seja usada cada vez com maior frequência e num número cada vez mais diverso de actividades.
Mas será natural que se substitua à nossa sensibilidade, espírito de iniciativa e capacidade de discernimento? Ao próprio instinto? Hoje em dia ninguém duvida dos resultados que uma máquina de calcular apresenta. Chegamos a um ponto em que a convivência com a máquina é tão pacífica que todos os seus comportamentos são aceites como normais: tanto os certos como os errados. Tanto quando elas funcionam, como quando falham, confiamos nelas, achamo-las normais, integramos o seu comportamento na nossa rotina e seguimos imediatamente com a nossa vida sem pensar sequer duas vezes. Ou seja, é tão natural acreditar em '8741651 x 5861468 = 51238907603669', como que 'o passe desta senhora é válido, a máquina é que se está a passar'. E no entanto, ambas as afirmações são falsas.
Será esta convivência pacífica, simultaneamente perigosa? Estaremos nós a dar os primeiros passos no sentido do domínio total da máquina? Quanto tempo faltará para que elas tenham vontade própria? Uma vontade poderosa, totalmente racional, desprovida de qualquer consciência ética, desprovida de amor, virada somente para a eficiência absoluta.
Certamente que não fui a primeira a questionar-me sobre isto... filmes como o Exterminador Implacável ou Resident Evil (para mencionar apenas exemplos recentes) abordam a temática das máquinas autónomas. Mas é engraçado que um simples erro do pica, por ter confiado na sua maquineta, tenha trazido à baila esta questão.
Por via das dúvidas, eu desligo o PC antes de ir dormir. Nunca se sabe o que ele poderá ficar a fazer nas minhas costas :)
2 comentários:
resumindo: é sempre melhor tomar a red pill.
Tem que se lhe diga,esta história das máquinas.Por vezes não sei se estou dentro da máquina ou se é ela que está dentro de mim,como um feto a crescer ,a mandar-me recados electrónicos sobre os seus apetites gastronómicos. Se andasse de combóio havia de sentir que me deslocava numa paisagem virtual.Gosto quando inventas coisas que nos fazem inventar outras...
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