terça-feira, 16 de outubro de 2012

mimo

Durante muitos anos, nas manhãs de 21, a menina era acordada pela música de um livro (daqueles que tocam quando se carrega num botão ou quando se abre a página), que lhe cantava os parabéns. Acordava-se cedo nessa altura, para ver os bonecos se tivesse sorte, mas principalmente para ler e brincar no quarto ou no quintal. A 21 era diferente, acordava-se para receber presentes ainda na cama (o livro a tocar na sua voz electrónica) e depois, sim, começava mais um dia. 

Havia sempre grandes festas, com muitos meninos e meninas, a fazer o pino no sofá da sala, com os primos de sempre e com os parentes distantes (não tão distantes, mas que pareciam de outro país) cheios de abraços a cheirar a velho, lenço na cabeça e cara triste. Tinham de vir, todos os anos tinham de vir, vinham de longe, muito longe para ver a menina, que não se sentia especial pelo esforço e devoção, mas antes desconfortável com isso. Até que deixaram de vir. 

Cantava-se os parabéns, às vezes num bolo "de dois andares", como ela pedia. Era sempre bom, mas também um bocadinho melancólico, ela nunca soube explicar porquê. Num dos anos acordou antes da mãe e, quando viu que não ia haver livro a dar música conforme habitual, desatou num pranto. Mimo, muito mimo. A mãe lá foi, esbaforida, buscar o livro e repetiu-se o ritual, um bocadinho às três pancadas, mas cumpriu-se a tradição.

Algumas tradições são importantes. Os aniversários, por mais que digam que não, são importantes. E o mimo é importante. Entre tanta tristeza social, injustiças, revolta calada, sede de um sangue nas ruas que nunca mais vem, mentiras e desilusões... o mimo este ano é mesmo muito importante.

2 comentários:

Anónimo disse...

Do passado,das memórias dos afectos, das pequenas histórias, se faz muito do presente. Umas vezes boas, outras nem tanto, pouco importa, tê-las é o importante. Da ritualização desses momentos nasce a tradição, e por aí também se constroem os pequenos universos pessoais, a vida,numa palavra.
Quanto ao mimo, quanto mais melhor, como a comida, mais vale sobrar do que faltar, especialmente nestes tempos de fome.

Tradicional

cantavam-se... disse...

os parabéns...especialmente nestes tempos de fome....em que ninguém vai aos pombos nem aos gatos...